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sábado, 23 de outubro de 2010

Cronicas tunisianas parte 4

«É curioso verificar que as coisas aqui funcionam exactamente ao contrário: os miúdos portugueses começam todos por beber álcool – não raras vezes com o incentivo dos pais – e só depois é que os vemos a dar umas passas atrás do refeitório da EB123. Isto acontece porque fumar, em Portugal, é ainda considerado mais subversivo do que beber. (…) Aqui, uma vez que a religião “proíbe” o consumo de álcool, é exactamente ao contrário: os miúdos tunisinos começam todos por fumar e só mais tarde é que os vemos a espetarem-se com o carro dos pais contra um poste de electricidade.»
Escrevi isto há uns tempos e, agora, experimentei na pele o resultado prático da minha observação. Não se preocupem que não fui atropelado por um adolescente embriagado. Não fui mas ia sendo – mas não na forma que vocês julgam. O episódio conta-se em cinco quarenta e quatro linhas:
Tinha já cumprido 26 dos 30 km a que me havia proposto fazer no Domingo, quando, à distância, diviso um carro encostado à berma. Não devia passar muito das 6 da tarde e, se bem conheço a recta em questão, devia estar, nessa altura, a cerca de 500 metros da viatura. Nada de especial, portanto. Uns 100 metros mais adiante, porém, vejo as quatro portas do carro abrirem-se e, de dentro delas, saírem outras tantas criaturas; saíram as criaturas e saiu o chinfrim proveniente do auto-rádio do veículo – aquilo que, ao longe, se me assemelhava aos gemidos de uma gata no cio. Nesse momento, dadas as circunstâncias, tive de tomar uma decisão: ou aproveitava um pequeno desvio, que eu sabia existir entre mim e o carro, de maneira a evitá-los; ou, então, convencia-me de que a estrada é de todos, de que estava no meu direito usá-la e de que seria de “coninhas” fugir de um bando de criaturas que, o mais provável, era ainda nem pêlos nas ventas terem. Acho que não preciso de dizer para que lado pendeu a minha decisão; nem isso nem que as criaturas tinham, afinal, bastante pêlo nas ventas. Automaticamente, mal me viram, dois deles despiram as suas respectivas t-shirts e, em tronco nu, desataram a girá-las sobre a cabeça à la cowboy. O desvio, por essa altura, já tinha ficado para trás e eu só me lembro de pensar: “Queres ver que vou ser raptado e posteriormente enrabado por um bando de rabetas alcoolizados?” Com tal perspectiva em mente, consegui driblar três das criaturas com uma finta de corpo – capacidade herdada do futebol humano (1) – e só não logrei passar pela quarta porque esta era a que em pior estado se encontrava. Explico-me melhor: o tipo movia-se de tal modo aos ésses que fiquei sem saber para que lado o haveria de fintar e acabei, inevitavelmente, por ir contra ele. Bem vistas as coisas, a verdade é que eu é que o ia atropelando – se é que se se pode chamar atropelamento a algo equivalente ao choque entre um Fiat Uno e um camião TIR. O tipo era uma viga: qualquer coisa a meio caminho entre o Bruno Alves e o meu amigo Sarroncas (2) dos tempos do Futebol Distrital. “Une seule bière”, disse ele assim que me caçou por um braço. A sua mão esquerda prendia o meu braço e a simétrica exibia uma lata de cerveja. “Non, merci”, respondi-lhe eu. Ao que ele voltou a insistir, agora em Inglês, “Just one bier”, como se por mudar de língua eu fosse mudar de opinião. Mais uma resposta negativa e mais uma tentativa, desta vez num italiano espanholado. Até que ele se deu, finalmente, por vencido – digo “finalmente” mas toda a prosa não durou mais de 10 segundos, tanto mais que as restantes criaturas nem tempo tiveram de se juntarem a nós. Eu, aliás, nem sequer parei de correr: encurtei a passada quando ele me caçou o braço, mas, em momento nenhum, parei. Deu-se por vencido e largou-me; e eu automaticamente pensei que me tinha visto livre dele. Mentira. Da primeira vez que espreitei por cima do ombro, lá vinha o infeliz a correr atrás de mim, ainda e sempre aos ésses, a entornar a cerveja por tudo quanto era lado e, surpresa surpresa, descalço – apenas nesse momento me apercebi que ele estava descalço. Nada que o perturbasse, no entanto, pois ainda fez uns bons 100 metros na minha perseguição; e só não fez mais porque, entretanto, um dos seus amigos calçados o alcançou e chamou à razão.
Moral da história: um corredor tem de conhecer os seus inimigos. Em Portugal são os cães. Na Tunísia – até porque aqui os cães são raros – são os adolescentes bêbados.
(1) Qualquer dia, se estiver para aí virado, virei aqui vos falar das actividades – entre as quais o futebol humano – a que eu me dedicava, nos tempos livres da Escola Secundária, quando não havia bola para jogar à bola (redundância intended).
(2) Qualquer dia, se estiver para aí virado, virei aqui vos falar do meu amigo Sarroncas e da forma como ele uma vez partiu, intencionalmente, um dos seus dentes da frente para, no lugar deste, conseguir enfiar o cigarro e, assim, ser capaz de fumar e falar ao mesmo tempo.

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